Em
entrevista, a advogada Evane Beiguelman Kramer esclarece a norma que endurece
as regras para punição de empresas envolvidas em atos contra a administração
pública.
A lei 12.846/13, conhecida como lei anticorrupção. Ao sancionar a norma, a
presidente Dilma vetou três pontos do texto. O primeiro, do § 6º do art. 6º,
que dispunha sobre o valor de multa estabelecida às pessoas jurídicas
consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos na lei. Outro
determinava que seria levado em consideração na aplicação das sanções "o grau de eventual
contribuição da conduta do servidor público para a ocorrência do ato lesivo". E, por fim, o § 2º do art. 19, segundo o
qual "dependerá de comprovação de culpa ou dolo a aplicação das sanções
previstas".
1. Qual principal inovação da lei anticorrupção?
Evane: A lei
anticorrupção sanciona a pessoa jurídica ou o grupo econômico, não mais se
limitando à sanção da pessoa do administrador público ou do agente público ou
privado que participar do ato. Apresenta mecanismos mais eficazes de
recuperação do patrimônio público, pois implica em sanções que atingem o
faturamento da empresa, o perdimento de bens etc. Seu caráter punitivo é também
indenizatório, com maior probabilidade de eficiência de recuperação de valores.
Dispõe, também, sobre a prescrição quinquenal, dispositivo que funciona como
mecanismo de garantia de defesa contra os processos infinitos. Por outro lado
importará em reorganização dos segmentos de compliance e da cultura empresarial
brasileira.
2. Quais as principais diferenças entre a lei anticorrupção e a
lei de improbidade?
Evane: Tanto a lei
anticorrupção (lei 12.846/13) quanto a lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92) explicitam
o cânone da moralidade do art. 37, § 4º da Constituição Federal e ambas tem por
escopo impor sanções por infração à moralidade administrativa. A lei de
improbidade administrativa (lei 8.429/92) impõe sanções aos agentes públicos
(portanto, pessoas físicas), incursos em atos de improbidade nos casos em que:
a) importem em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) que causem prejuízo ao
erário público (art. 10); c) que atentem contra os princípios da Administração
Pública (art. 11), aqui também compreendida a lesão à moralidade
administrativa. O objetivo da lei de improbidade, portanto, é punir o
administrador público desonesto, não o inábil.
Por tais razões, a jurisprudência pátria já consolidou o
entendimento que para que se enquadre o agente público na lei de improbidade é
necessário que haja o elemento subjetivo (dolo ou culpa grave), bem como que
resulte prejuízo ao ente público, caracterizado pela ação ou omissão do
administrador público. De fato, a lei alcança o administrador desonesto, não
despreparado. Não há previsão expressa de lapso prescricional dos atos de
improbidade. As sanções por ato de improbidade administrativa, à luz da lei
8.429/92 encontram raiz na CF, art. 37, § 4º: "Os atos de improbidade
administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função
pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível".
A gradação das penas é feita nos moldes do artigo 12, I a III da lei 8.429/92.
Já a lei anticorrupção dispõe sobre a responsabilidade
administrativa e civil de pessoas jurídicas e das pessoas físicas de seus
dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora ou coautora
ou partícipe do ato ilícito. Em relação à pessoa jurídica o regime jurídica de
responsabilização é objetivo e em relação às pessoas físicas o regime jurídico
é da responsabilização subjetiva, na medida em que o art. 3o § 2o da lei
12.846, de 1º de agosto de 2013 dispõe que "os dirigentes ou
administradores somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida da
sua culpabilidade". No tocante às sanções, a lei anticorrupção
prevê, na esfera administrativa, a sanção pecuniária, de multa, no valor de
0,1% (um décimo por cento) a 20% do faturamento bruto do último exercício
anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a
qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua
estimação; além de dar publicidade da decisão condenatória. Na hipótese do
inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do
faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000 a R$
60.000.000,00. Igualmente a lei prevê que a aplicação da multa não exclui, em
qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado.
Contudo, a sanção administrativa não impede a imposição
de sanções decorrentes de processo judicial, previstas a multa, perdimento de
bens, direitos ou valores, além de suspensão ou interdição parcial de suas
atividades, a dissolução compulsória da pessoa jurídica e a proibição de
receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou
entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo
poder público, pelo prazo mínimo de um e máximo de cinco anos. Há previsão de
prescrição quinquenal das infrações, contada da data da ciência da infração ou,
no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
3. Quais as principais deficiências e pontos controversos?
Evane: Um dos pontos
controvertidos é o aparente conflito com a lei de improbidade (8.429/92), a lei
de licitações (8.666/93)
e a lei de defesa da concorrência (8.884/94).
Por exemplo, na lei de licitações, as sanções pelas condutas ilícitas são
aplicáveis somente em face das pessoas físicas. Igualmente, a legislação atual
imputa responsabilidade subjetiva aos agentes (ou seja, deve ser comprovada a
culpa dos envolvidos), ou ainda, muitas das infrações previstas na lei já estão
presentes na lei de improbidade (8.429/92), a lei de licitações e a lei de
defesa da concorrência. Portanto, não resta claro qual norma deverá ser
aplicada diante de uma situação que possa representar uma infração tanto a lei
anticorrupção quanto à legislação existente. A questão de legislação aplicável
tem reflexos imediatos nas sanções a serem aplicadas: na hipótese de um ato
representar uma violação tanto à lei anticorrupção quanto à lei de licitações,
deverá ser aplicada a declaração de inidoneidade da lei de licitações ou da lei
anticorrupção?
Outro ponto controvertido é a possibilidade de dissolução compulsória da
pessoa jurídica, que se afigura como sanção severa e, quiçá, irreversível,
semelhante à pena capital à pessoa jurídica.
Por último, para o alcance de resultados eficazes de combate à
corrupção, no regime da responsabilização objetiva, que independe da culpa,
bastando, assim, a existência do fato, a aplicação da lei deve levar em conta
conduta tipificadas exaustivamente, bem como competências taxativamente
definidas das autoridades responsáveis pelos procedimentos administrativos
sancionatórios, sob pena de, ao contrário de fomentar as boas práticas
coorporativas, venha a norma a se tornar um instrumento (polarizado,
maniqueísta e ineficiente) de "combate" a todo aquele que contrate
com a Administração Pública.
4. E o que pode ser dito acerca dos vetos?
Evane: No primeiro veto,
a presidente retirou do texto o trecho que limitava o valor da multa aplicada
às empresas ao valor do contrato. Fica mantida a redação que prevê a aplicação
de multa de até 20% do faturamento bruto da empresa, ou até R$60 milhões,
quando esse cálculo não for possível.
O dispositivo vetado poderia dar maior equilíbrio ao caráter
indenizatório das punições, sem ultrapassar esta finalidade.
No segundo veto, o governo retirou da lei o trecho que tratava da
necessidade de comprovação de culpa ou dolo para aplicar sanção à empresa. O
veto está em sintonia com o regime de responsabilidade objetiva da pessoa
jurídica, mas se manteve a subjetivação da responsabilidade no tocante às
pessoas físicas (art. 3º § 2o Os dirigentes ou administradores somente serão
responsabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade).
Fonte: Migalhas.com.br