Se os homens são de Marte e mulheres são de Vênus, dada a dificuldade que estes dois seres tem para se entender, podemos imaginar que o Direito é de Mercúrio a Medicina de Urano, pois a distância entre essas duas ciências é tal que muitas vezes tem-se a impressão que e mais fácil um homem e uma mulher se entenderem do que um médico e um operador do Direito conseguirem se comunicar. Mas assim como existem terapeutas de casais que procuram conciliar sexos opostos, existem profissionais dedicados a tarefa de traduzir a linguagem das ciências da saúde para a das ciências jurídicas.
Esse desafiante papel de intérprete sempre coube a Medicina Legal aproximando as duas áreas de forma que o conhecimento médico pudesse amparar o Direito na elaboração e execução das leis. Com o acúmulo de conhecimento, contudo, a Medicina precisou ser subdividida em diferentes especialidades, de forma que fosse possível ao médico dar conta de se manter atualizado com o volume crescente de informações. Criou-se, assim, mais uma dificuldade na já árdua missão do médico legal:
“manter-se atualizado em todas as áreas da Medicina e ainda traduzi-las, o que tornou-se um fardo impossível de ser carregado por um perito só. Fica evidente a necessidade dos peritos especializados em geral, e do Psiquiatra Forense em particular”.
Apesar de ganhar mais importância nesse momento de explosão do conhecimento, a Psiquiatria Forense é antiga, de modo que sua história confunde-se com a da própria Psiquiatria clínica. Isso porque, logo nos primórdios da codificação das leis, os homens se deram conta de que nem todos eram responsáveis da mesma maneira: os então chamados loucos ou dementes já eram, no alvorecer[1] do Direito, regidos por normas excepcionais. Logo que a loucura passou a ser entendida como matéria médica, em plena era do Iluminismo[2], nascem quase que simultaneamente, as ciências da Psiquiatria Clínica e Psiquiatria Forense. Tal não se deu por coincidência casual, mas antes por uma necessidade dos operadores do Direito.
A lógica é simples, podendo ser demonstrada por meio de um silogismo.
PREMISSA[3] MAIOR | PREMISSA MENOR | CONCLUSÃO |
O louco goza de um status diferenciado | Os médicos são responsáveis por definir quem é louco | Logo, os médicos são responsáveis por definir quem goza de um status diferenciado perante a lei. |
Percebe-se que, no mesmo instante em que a loucura passou para a alçada[4] médica, dando origem a Psiquiatria, fez-se necessária a presença do psiquiatra nos tribunais.
O século XIX foi à época de ouro da Psiquiatria Forense. Absorvendo influências da Antropologia e da nascente Sociologia, os psiquiatras passaram a acreditarem-se capazes de entender os determinantes de todo comportamento humano, diagnosticando não apenas os loucos, mas também os “loucos morais”, entre outros diagnósticos dessa estirpe[5], inflacionando sua própria importância nos processos, sobretudo os criminais.
5.2 - Medico x juiz
Esse avolumar de poder dado ao medico dentro dos fóruns não passou despercebido aos juristas, sobretudo aos magistrados — se determinar a origem de todo crime e dizer como o criminoso esvaziada, ficando relegada[6] a meramente avalizar a decisão do psiquiatra. Não foram poucos os debates e as disputas travadas nos meios jurídicos, mas em toda a sociedade. Hoje é indiscutível que, embora houvesse extrapolação[7] por parte dos médicos no que se referia ao seu papel, a importância dos peritos nas causas judiciais é crescente, sobretudo pelo avanço das chamadas Neurociêncas[8].
Se for evidente que não cabe à Psiquiatria falar sobre qualquer crime, não se pode negar também que muitos casos só são esclarecidos com auxílio de tais profissionais.
5.3 - DIREITO PENAL X DIREITO CRIMINAL
Enquanto o CRIME é a tipificação de um ou vários atos humanos que ferem bens jurídicos de maior relevância, a PENA é a respostas do Estado ao indivíduo que fere estes bens. Seja no ato tipificado ou na pena, a culpabilidade é fator primordial para a punibilidade[9].
Nossa legislação utiliza a terminologia “Direito Penal” para representar o conjunto de normas sobre o poder de punir do Estado. Seguindo ordenamento positivista, como na Alemanha, nossa legislação não poderia utilizar a nomenclatura “Direito Criminal” para garantir o princípio da legalidade, já que o conceito de crime avança para um espaço distante das leis, envolvendo o ser humano e sua relação subjetiva com a sociedade.
O foco do Direito Penal não é apenar o criminoso, mas evitar o crime, protegendo os bens jurídicos relevantes. Não é a pena que protege, mas um conjunto de instrumentos jurídicos que intencionam afastar o crime.
Temos as medidas de segurança, que por tratarem de atos tipificados cometidos por pessoas inimputáveis, tem a culpabilidade afastada, para alguns doutrinadores, inexistindo crime. Para outros, afasta-se a punibilidade, exigindo tratamento especial para os agentes.
5.4 - DA IMPUTABILIDADE PENAL
“Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do ato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”
A imputabilidade[10] é a capacidade de a pessoa entender que o fato é ilícito e de agir de acordo com esse entendimento.
Para a aplicação da sanção penal é necessária a CULPABILIDADE[11], que é a reprovabilidade da conduta. Por sua vez, a IMPUTABILIDADE é pressuposto da culpabilidade, pois esta não existe se falta a capacidade psíquica de compreender a ilicitude. Por isso o artigo 26 dispõe que há isenção de pena se o agente ao tempo da ação era incapaz de compreender a ilicitude do fato (capacidade de compreensão) ou, embora compreendendo o caráter ilícito do fato, era incapaz de conduzir-se de conformidade com esse entendimento (capacidade de inibição).
Assim, INIMPUTABILIDADE (não-imputáveis) são as pessoas que não tem aquela capacidade (imputabilidade).
Declara a sua inimputabilidade, o agente, nos atuais termos do nosso Código Penal não é condenado, mas sim “absolvido”. Não obstante, aferida a sua periculosidade em razão do fato criminoso praticado, fica ele sujeito a MEDIDA DE SEGURANÇA, a qual tem indiscutível caráter de sanção penal.
5.5 - REQUISITOS
São três os necessários para que se afirme a inimputabilidade prevista no caput desse artigo:
CAUSAS (1) | CONSEQUENCIAS (2) | TEMPO (3) |
Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Nosso ordenamento não indica quais seriam essas “doenças mentais”. (cabe a psiquiatria forense definir) | Incapacidade completa de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com essa compreensão | Não basta a presença de um dos requisitos, isolado. Necessário se faz de uma das condutas (1), haja uma das duas conseqüências (2), à época do comportamento do agente. |
5.6 - TRANSTORNOS MENTAIS
Podemos entender como classificação dos transtornos mentais:
Transtornos deficitários | Transtornos na integração constitucional da pessoa | Transtornos mórbidos |
Congênitos: as oligofrenias, levando a idiotia, à imbecilidade ou à debilidade mental. Adquiridos: demências, por razões vasculares, infecciosas, degenerativas ou mistas. | Psiconeuroses e organeuroses (histérica, neurastênica, anascástica e angustiosa) Psicoses (de situação ou reativas, traumáticas, infecciosas e pós-infecciosas, sifilíticas, exotóxicas, sintomáticas[14] e endotoxícas, epilépticas, maníaco-depressivas, esquizofrênicas, paranóicas e parafrênicas) |
5.7 - DOENÇA MENTAL
A expressão inclui as moléstias mentais de qualquer origem, com fatores biopsicológicos, como a maníaco-depressiva, a paranóica, a esquizofrênica, a epilepsia, além dos fronteiriços, bem como em razão de enfermidades pré-senis (Alzheimer) ou senis[15].
Não descartando aqui a dependência toxicológica, quando moderada pode levar a SEMI-IMPUTABILIDADE, uma vez que o viciado entende oi caráter criminoso do fato mas é parcialmente capaz de se determinar de acordo com esse entendimento ou, até a IMPUTABILIDADE, quando a dependência for grave, ele entende parcialmente, ou não entende o caráter criminoso do fato, e é totalmente incapaz de determinar-se de acordo com aquele entendimento parcial, quando houver. Igualmente é o caso do alcoolismo crônico, ele é doente mental, do ponto de vista psiquiátrico.
5.7.1 – Desenvolvimento mental falho ou retardado
O retardamento mental tem três graus, havendo por vezes sinais físicos de degeneração[16]:
Retardo Mental grave (idiotia) | Retardo Mental Moderado (imbelicidade) | Retardo Mental Leve (debilidade mental) |
No qual o indivíduo vive em estado semivegetativo, incapaz de qualquer ato que envolva alguma complexidade, faltando atenção, raciocínio e imaginação, mal falam. | Os portadores tem atenção facilmente exaurível[17], com conteúdo de pensamento sempre pobre, com pouco desenvolvimento da compreensão e do uso limitado da linguagem, podendo a pessoa ser apática[18] ou irrequieta. São até capazes de realizar certos trabalhos braçais. | Decorre de uma diminuição da inteligência que não invalidade a vida em sociedade, chegando a pessoa a constituir família e a trabalhar em atividades práticas, embora sem grande raciocínio, pensamento abstrativo[19] e cultural; a pessoa por vezes, tem consciência de sua debilidade tentando compensá-la de diversas formas, com exibicionismo, ostentação, fala excessiva com palavreado difícil. |
Praticamente não é capaz de delinquir, salvo raras exceções, com episódios violentos, estando-se diante de um quadro de inimputabilidade. | Pode haver episódios de brutalidade, com atentados violentos ao pudor, estupros, agressões nos filhos. | Por vezes são utilizados como laranjas, assumindo a culpa de terceiros, havendo igualmente, um quadro de imputabilidade ou semi-imputabilidade. |
5.8 – Visão da psiquiatria forense
Os indivíduos que acabam cometendo crimes podem, segundo a psiquiatria forense, ser divididas em cinco grupos, havendo nos dois últimos (fronteiriços criminosos e loucos criminosos), quadro de doença mental:
CRIMINOSOS IMPETUOSOS | Aqueles que agem em curto-circuito, por amor à honra, sem premeditação, fruto de uma anestesia momentânea do senso crítico, lembrando os passionais, que se se arrependem do crime praticado, já que o seu psiquismo é satisfatoriamente estruturado, salvo falha no senso moral quando em face de determinada situação que o instiga. |
CRIMINOSOS OCASIONAIS | Apesar de terem tendência marcante para o crime, nele caem levados pelas condições pessoais e influência do meio em que vivem, geralmente são pessoas de vida honesta que, devido à debilidade do senso moral, diante de maus exemplos ou de dificuldades que a vida lhes impõe, não resistem à tentação que cercas ocasiões lhe proporcionam, via de regra praticando furtos e ou estelionatos. |
CRIMINOSOS HABITUAIS | Começando com os primeiros delitos desde a adolescência, são aqueles que têm no crime a sua profissão, unem-se a quadrilha e a gangs, embora possam agir individualmente. Quando recolhidos nos presídios formam a escória, usam drogas e álcool, corrompendo-se física e moralmente, são assassinos de aluguel, traficantes, seqüestradores. |
FRONTEIRIÇOS CRIMINOSOS | São pessoas que apresentam permanentes deformidades do senso ético-moral, distúrbios do afeto e da sensibilidade, cujas alterações psíquicas os levam aos mais variados crimes, quando porém, dão de ser violentos, sem sombra de dúvidas, são os que praticam os atos mais perversos e hediondos dentre todos os outros. Nesse tipo, de um lado está a normalidade e do outro a doença mental, entre ambos há a zona fronteiriça, que não é nem normalidade nem doença, sendo a característica principal desses criminosos a extrema frieza e insensibilidade moral com que tratam as vítimas. Certamente são os mais perigosos, agindo sozinhos, planejando, com idéias fixas, o seu plano doentio, perigosos, recomeçando novamente após a prática de um crime, sem motivo externo qualquer, mas somente pelo desejo mórbido. |
LOUCOS CRIMINOSOS | São indivíduos com notáveis e permanentes alterações de uma ou várias funções biopsicológicas, dividindo-se em dois grupos: a) aqueles que agem após um processo lento e reflexivo, como, por vezes, na paranóia ou na esquizofrenia paranóide, que tem um delírio sistematizado que os leva ao crime. b) Aqueles que agem por impulso momentâneo, súbito, agindo em curto-circuito, quase sempre com ferocidade e multiplicidade de golpes, como uma explosão dirigida a um fim, podendo o paradigma ser de a epilepsia ou, às vezes, a oligofrenia, não obstante existem vários tipos de esquizofrênicos, epilépticos e oligofrênicos, podendo todos, agir por impulso ou premeditadamente. |
[1] Começar a manifestar-se; aparecer.
[2] Movimento intelectual dos sécs. XVII e XVIII, em países europeus e em suas colônias, que tem como base a crença na razão e nas ciências como motores do progresso.
[3] Cada uma das proposições que servem de base à conclusão.
[4] Jurisdição, competência.
[5] Origem, linhagem.
[6] Pôr em segundo plano; desprezar.
[7][7] Ir além de; ultrapassar, exceder.
[8] Estudo do sistema nervoso
[9] Caráter de punível.
[10] Atribuir (a alguém) a responsabilidade de
[11] Qualidade de culpável ou de culpado.
[12] Fraqueza orgânica; debilidade
[13] Seqüência de fenômenos que se renovam periodicamente.
[14] Relativo a sintoma, ou que o constitui.
[15] Da, ou próprio da velhice ou dos velhos.
[17] Esgotar inteiramente; despejar até à última gota.
[18] Estado de insensibilidade, de indiferença
[19] Que opera com qualidades e relações, e não com a realidade.
Fonte: Psicologia Jurídica, Glória Regina Dall Evedove
Fonte: Psicologia Jurídica, Glória Regina Dall Evedove