Rio de Janeiro de outrora

foto: Glória Regina Dall Evedove


Tragédias como esta que aconteceu no Rio de Janeiro nos remetem, inexoravelmente, a tempos passados. A um Rio que não volta mais. E não é que nesta madrugada nos chega uma missiva, remetida por um migalheiro, que sintetiza o que queríamos dizer. Ouçamos o distinto senhor :
"Senhor Diretor,
Peço desculpas se ocupo vosso tempo e o dos leitores com divagações deste provecto e solitário carioca, que vive em sua vetusta morada aos pés da Rua do Jogo da Bola, no castigado centro do Rio de Janeiro.
Contemplando as mazelas que afligem esta urbe moderna, fico saudoso do tempo em que nossos avós, os sinhozinhos e as nhanhãs de outrora, passeavam despreocupados, com seus tílburis, pelas ruas da Corte, sem jamais imaginar que seus descendentes sofreriam com bueiros a explodir, arranha-céus a desmoronar e helicópteros a perturbar seu sono.
Quando falo nisso, meus sobrinhos dizem que estou a romantizar o passado, que a cidade antiga, com suas vielas infectas e suas epidemias de febre amarela, estava longe de ser um paraíso, mas essa nostalgia do que não vivi insiste em habitar minha cachola, talvez perturbada pelo incessante funk que meu jovem vizinho insiste em ensinar para todos os moradores do Morro da Conceição.
De uns tempos para cá, dei para imaginar que as tragédias que se abatem sobre esta cidade são vinganças que o passado fica a engendrar, em represália aos maus-tratos que o progresso causou à memória desta terra.
Assim, passei a ver a tragédia do Bateau Mouche como uma resposta do Deus Netuno aos muitos aterros que avançaram sobre seus domínios. A explosão de um prédio na Praça Tiradentes, como uma retaliação arquitetada por Clio, a musa da História, diante de um contrassenso : como é que a cidade ergue, no meio de uma praça dedicada ao Mártir da Inconfidência, uma estátua de Dom Pedro Primeiro, um neto daquela desassisada rainha que foi a algoz do nosso herói?
Tudo isso me vem à baila quando penso na tragédia mais recente da cidade, que pôs abaixo três prédios da Rua Treze de Maio. A Treze de Maio, que já se chamou Rua da Guarda Velha, porque ali o velho Gomes Freire havia estabelecido um corpo de guarda para conter a algazarra dos escravos que vinham buscar água no Chafariz da Carioca... A Treze de Maio, que já abrigou o Teatro Lírico, onde brilharam Caruso, Sarah Bernhardt e Duse, e onde Toscanini pela primeira vez regeu uma orquestra... A Treze de Maio, que deveria ser tão cara para os jornalistas, pois ali ficava o prédio neogótico da Imprensa Nacional, ali Irineu Marinho fundou O Globo, e Chateaubriand instalou num certo momento seu império.
E não deixa de ser irônico o fato de que um dos edifícios destruídos agora fica na pequena Rua Manuel de Carvalho, cujo nome homenageia um dos mestres da engenharia brasileira, auxiliar de Paulo de Frontin na epopeia de construção da Avenida Central.
Recuo mais no tempo e me recordo que, ocupando o leito da atual Treze de Maio, havia uma lagoa, a de Santo Antônio. E, voltando à conspiratória teoria da Vingança da História, fico a imaginar se não haveria nessa tragédia uma revanche tardia dos sapos da antiga lagoa. Afinal, os sapos, barbudos ou não, podem causar muitos estragos...
Atenciosamente,
Tertuliano Vahia Monteiro de Sá e Benevides"
Fonte: Migalhas.com.br

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