A mediação e o notariado
O direito brasileiro vive uma revolução
silenciosa. Pequenos ajustes introduzem mudanças na Justiça. A economia exige
esses avanços. Primeiro, foi a aceitação da arbitragem. Agora é a vez da
mediação e da conciliação. A Resolução nº 125, de 2010, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), e o Provimento nº 17, de 2013, da Corregedoria-Geral da Justiça
(CGJ) de São Paulo, são passos dessa marcha.
Mediação e conciliação são práticas
antigas de ordenação pública. Incentivar o notariado a exercer essas funções é
boa escolha. Registros públicos são voltados ao aprimoramento do direito. Fazer
cumprir as leis é objetivo do sistema jurídico. O Judiciário é caminho de
satisfação do anseio. Outras organizações que contribuam para a concretização
do direito - especialmente segmentos reconhecidos pela população, como serventias
extrajudiciais - também são bem vindas.
Nossa cultura promove excessiva
judicialização dos conflitos. Pensamos em termos de proibições precisas e no
direito como a "regra do jogo". O resultado é que as pessoas se
sentem maltratadas pela Justiça. Na mediação, o importante não é proibir: é
favorecer o acordo. Mediador não resolve e não reprime. Escuta e informa sobre
as possibilidades da lei. Deixa a decisão para as partes. Na mediação, o
conflito é utilizado para melhorar a qualidade de vida das pessoas, não para
submetê-las à decisão de terceiros.
O notário sempre atua como mediador.
Orienta e mostra o que o direito autoriza, mas nada decide. Mediador não
sentencia. Facilita a saída consensual. Essa vocação é inerente à função
notarial. A imparcialidade do notário tem raízes em fundamentos diversos
daquela do juiz: o mediador é imparcial para permitir que as partes construam a
decisão; o juiz é imparcial como condição de legalidade da sua decisão.
Nada proíbe o instrumento particular e o
auxílio de leigos na mediação. Evidentemente, também nada impede a presença do
advogado. Porém, ela não é obrigatória. Na presença do tabelião a situação não
muda. Qualquer instrumento que possa ser elaborado por particulares, com ou sem
mediadores, poderá ser lavrado em cartório, por instrumento público. Diga-se o
mesmo da mediação facilitada pelo notário. Diferenças importantes estão no fato
de que a solução notarial gozará de fé pública, primará pelo respeito às leis
vigentes e terá confidencialidade. Mas, apesar de altamente recomendável, a
presença do advogado não é obrigatória, assim como não o é para a maioria das
escrituras. Exceção feita a inventário, partilha, separação consensual e
divórcio - escrituras que exigirão assinatura dos advogados-, na mediação ela
não será obrigatória.
O Provimento nº 17/2013, que implementa a
mediação extrajudicial, é questionado no CNJ. Alega a seccional paulista da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) que essas funções só poderiam ser
criadas por lei e que a participação do advogado seria obrigatória. Há exagero
na posição. Quando da elaboração da escritura, o notário sempre atua como
mediador. Orienta e mostra o que o direito autoriza, mas nada decide. Limita-se
a controlar a legalidade e facilitar o acordo.
A Lei de Arbitragem também faculta às
partes eleição de árbitro, representação por advogado e limita o objeto às
causas que digam respeito a "direitos patrimoniais disponíveis", isto
é, que possam ser exercidos livremente pelo titular. São as mesmas
características que acompanham o provimento da CGJ: facultatividade da eleição
do terceiro (notário mediador), possibilidade (não obrigatoriedade) de
representação por advogado e limitação da atividade a questões que envolvam
"direitos patrimoniais disponíveis". Nas arbitragens é rara a
dispensa do advogado. Nas mediações ocorrerá o mesmo. Assim como as arbitragens
ampliaram o mercado de advogados, mediações alargarão os horizontes da
advocacia.
Paira preocupação de que o ambiente dos
cartórios não seja propício à mediação. Duas seriam as razões: notários são
delegados de serviço público controlados pelas corregedorias e teriam feições
burocráticas incompatíveis com a flexibilidade da mediação. Quanto à primeira
crítica, há que se sublinhar que, pela Constituição de 1988, serviços notariais
são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Não há
vinculação pessoal ou submissão hierárquica ao Judiciário na gestão dos
serviços. A qualificação dos títulos submete-se exclusivamente à lei. E, caso o
serventuário tenha dúvidas, judicializa a questão, com as garantias do
contraditório. Tudo reforça a independência. Quanto aos vícios burocráticos,
preconceito à parte, ainda não nos demos conta de como o ingresso por concurso
e os avanços tecnológicos rejuvenesceram as práticas notariais.
Nenhuma instituição sobreviveria sem
ineficiência. O sistema de notariado latino demonstra versatilidade milenar.
Está presente em mais de 80 países, dentre eles Alemanha, França e Japão. Há
tendência mundial para sua adoção, como mostram Ásia e ex-União Soviética. Em
muitos lugares, notários são mediadores. O grande Joaquín Costa dizia, no
início do século XX, que "o número de sentenças deve observar razão
inversa ao número de escrituras: teoricamente, "notaría abierta, juzgado
cerrado"". Em 1950, o não menos extraordinário Carnelutti lembrava:
"Quanto mais notário, menos juiz." Com um século de atraso, o direito
brasileiro se movimenta no sentido dessa revolução silenciosa. Para o bem de
juízes, notários, advogados e do cidadão.
Fonte:
Valor Econômico
Celso
Campilongo
Professor
titular da Faculdade de Direito da USP
Chefe do
Departamento de Teoria do Direito da PUC-SP
Este
artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico.
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