Sentenças judiciais trazem referências poéticas, sociais e musicais


Páginas carregadas de palavras rebuscadas, expressões em latim e referências a uma quantidade infinita de leis estão perdendo terreno. Cada vez mais juízes se utilizam de um vocabulário menos complicado na hora de redigir sentenças. Vale um estilo poético, a la Carlos Ayres Britto, ministro do Supremo Tribunal Federal que freqüentemente mistura letras de músicas e trechos de poemas em seus votos. Reflexões filosóficas, lições de moral e críticas contra a própria Justiça também estão presentes no rol de sentenças judiciais curiosas, inusitadas e até engraçadas, por que não dizer, Brasil afora.
Em Conceição do Coité, a cerca de 210km de Salvador, Bahia, o juiz Gerivaldo Alves Neiva condenou B.S.S., de 21 anos, a prestar serviço à comunidade, pedir emprego, freqüentar a escola e não roubar mais. A sentença, chamada pelo juiz de A Crônica de um Crime Anunciado, conta que o garoto, surdo-mudo, desde criança entrava na casa das pessoas para merendar, trocar de roupa, jogar videogame. Com o tempo, Mudinho, como é conhecido na cidade, passou também a surrupiar objetos.
O Ministério Público, relata a sentença, ofereceu dezenas de denúncias por atos infracionais contra Mudinho quando ele era adolescente. Depois de atingir a maioridade, o jovem foi condenado na comarca de Valente, cidade vizinha, por furto qualificado.
A sentença determinava uma pena de reclusão de dois anos e quatro meses. Mas, devido à inexistência de um estabelecimento prisional adequado, o jovem recebeu a possibilidade de cumprir a pena em regime aberto. Certo dia, entretanto, ele entrou numa marmoraria, foi preso novamente em flagrante e voltou a ser denunciado à Justiça.
Durante um dos interrogatórios, Mudinho disse, com a ajuda da mãe, única capaz de entendê-lo bem, que “toma remédio controlado e bebeu cachaça oferecida por amigos, que ficou completamente desnorteado e então pulou o muro e entrou no estabelecimento da vítima quando foi surpreendido e preso pela polícia”. O Ministério Público não se comoveu e manteve a decisão de pedir a prisão do rapaz por furto, tentado mas não consumado, classificando o ato como qualificado, porque ele escalou o muro da marmoraria — crime sujeito a uma pena de até oito anos de reclusão.
Opção pelo justo
Apesar da denúncia reiterada pelo Ministério Público, Gerivaldo decidiu mandar soltar Mudinho. Fez questão de lembrar que, desde a época dos atos infracionais cometidos pelo então adolescente, o Judiciário o encaminhou para todos os órgãos e instituições possíveis, ameaçou prender diretoras de escolas que não o aceitavam, mas o rapaz continuou sem assistência.
O magistrado expediu uma cópia da sentença e mandou Mudinho apresentá-la em todos os órgãos públicos da cidade, clubes, ONGs, escolas, sindicatos, igrejas, delegacias de polícia, entre outras instituições. A sentença, dada em 10 de agosto deste ano, assinala:
Hoje, segundo Gerivaldo, o rapaz recebe atendimento numa casa assistencial da cidade. “É um menino com problema mental, ele não sabe discernir entre o que é meu e o que é dele”, explica o juiz. Apesar de aplaudido por muitos, Gerivaldo não foi poupado de críticas. “Recebi e-mails desejando que ele assaltasse a minha casa, que era um absurdo essa decisão”, conta o juiz.
“A comunidade não fez nada por ele. O município não fez nada por ele. O Estado brasileiro não fez nada por ele. Hoje, B.S.S. tem 21 anos, é maior de idade e pratica crimes contra o patrimônio dos membros de uma comunidade que não cuidou dele”
“O futuro de B.S.S. estava escrito. Se não fosse morto por um proprietário ou pela polícia, seria bandido. Todos sabiam e comentavam isso na cidade. (…) Nenhuma sã consciência pode afirmar que a solução para B.S.S. seja a penitenciária. Sendo como ela é, a penitenciária vai oferecer tudo o que lhe foi negado na vida: escola, acompanhamento especial, afeto e compreensão? Não. Com certeza, não! É o juiz entre a cruz e a espada. De um lado, a consciência, a fé cristã, a compreensão do mundo, a utopia da Justiça. Do outro lado, a lei. Neste caso, prefiro a Justiça à lei”
Fonte: site do Correio Braziliense. Renata Mariz. Publicação: 12/10/2008

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