DIREITO COMPARADO
A fórmula de Radbruch e o
risco do subjetivismo
Gustav Lambert Radbruch
(1878-1949) é um daqueles juristas que possuem biografia e bibliografia
elogiáveis pela qualidade e pela coerência. Nascido na histórica cidade de
Lübeck, livre e hanseática, onde aprendeu a cultivar valores republicanos,
combatente na Primeira Guerra Mundial e um dos primeiros juristas a ingressar
no Partido Social Democrata, Radbruch perdeu sua cátedra com a tomada do poder
pelos nazistas e viveu os últimos dias sob a perseguição do regime, sem
renunciar a seus ideais, até a libertação da Alemanha pelas forças aliadas em
1945. Pouco antes de falecer, ele trabalhava incansavelmente pela reconstrução
da vida universitária alemã e deixou uma intrigante contribuição teórica, a
notória fórmula de Radbruch.
O professor de Heidelberg
era, como muitos juristas de formação socialdemocrata, ao exemplo de Hans
Kelsen, um positivista. De modo extremamente simplificado, pode-se dizer que a
vertente positivista kelseniana (sim, pois não há um único positivismo)
baseia-se na (a) separação entre Direito e Moral; (b) na autorreferência do
Direito; (c) na compreensão do Direito como sistema normativo, no qual as
instâncias de valor (de entre elas, a Justiça) são externas; (d) no
reconhecimento de que o fator de correção do Direito é intrassistemático,
seguindo a ordem escalonada de normas até a norma hipotética fundamental.
Não é este o local
apropriado para se refutar alguns exageros na crítica lançada contra Kelsen,
como se ele não reconhecesse as instâncias valorativas ou os elementos
metajurídicos, como dito por ele mesmo: “De um modo inteiramente acrítico, a
jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, a ética e a
teoria política. Essa confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas
ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão
com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do
Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar, ou, muito menos, por
negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que
obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são
impostos pela natureza do seu objeto”.[1][2]
Em 1946, Gustav Radbruch
publicou um pequeno (e polêmico) trabalho intitulado Injustiça legal e direito
supralegal, no qual, segundo alguns, ele teria abjurado suas posições positivistas
e abraçado o jusnaturalismo, após os horrores do nazismo e de suas práticas
genocidas.[3] Essa viragem doutrinária de Radbruch é geralmente citada por
muitos juristas do pós-guerra, embora haja controvérsias sobre se houve
realmente uma mudança em seu pensamento original. Nesse texto, ele enunciou a
hoje mundialmente conhecida “fórmula de Radbruch”, que tenta resolver os
conflitos entre a segurança jurídica (decorrente da aplicação do direito posto)
e a justiça (que estaria num plano supralegal, de índole jusnaturalista). A
fórmula consiste no seguinte enunciado: o conflito entre a justiça e a
segurança (rectius, certeza) jurídica pode ser adequadamente resolvido pelos
seguintes critérios: 1) o Direito Positivo, baseado na legislação e no poder estatal,
tem aplicação preferencial, mesmo quando seu conteúdo for injusto e não for
benéfico às pessoas; 2) a justiça prevalecerá sobre a lei se esta se revelar
insuportavelmente (rectius, extremamente) injusta, a tal ponto que se mostre
uma norma injusta, continente de um direito injusto.
Essa fórmula foi utilizada
para afastar o princípio nulla poena sine lege em relação aos criminosos de
guerra nazistas nos julgamentos do Tribunal de Nuremberg, que alegavam não ser
possível sua condenação ante a inexistência de norma anterior definidora de
alguns dos delitos por eles praticados. E, posteriormente, com a unificação
alemã, o Tribunal Constitucional manteve a condenação de guardas de fronteira
que fuzilaram impiedosamente pessoas que tentavam fugir para a antiga Alemanha
Ocidental.[4]
O Direito Natural, por meio
da instância de valor “justiça”, era o fator de correção radbruchiano para o
Direito Positivo. Modernamente, Robert Alexy buscou reconduzir a fórmula de
Rabruch à teoria dos direitos fundamentais. Para Alexy, é possível que o
sistema de normas jurídicas não disponha de mecanismos coativos e, nem por
isso, deixe de ser um sistema de Direito. Imperfeição não significa
impossibilidade de a coisa existir como tal. Quanto à separação entre Direito e
Moral, Robert Alexy introduz a fórmula de Rabruch, cuja síntese poderia ser
“injustiça extrema é não é Direito”. O Direito tem uma pretensão de correção e,
em larga medida, o próprio sistema a esse fim, com o recurso aos direitos
fundamentais e aos princípios.
A decisão do Supremo
Tribunal Federal na ADPF 153, que considerou ter sido a Lei 6.683/1979 (Lei da
Anistia) inteiramente recepcionada pela ordem jurídico-constitucional pós-1988,
tem sido submetida à fórmula de Radbruch e, para alguns autores, o julgamento a
teria desconsiderado.[5]
Mais do que debater sobre
situações específicas, é importante o estabelecimento de uma postura
metodológica uniforme. Tanto na Alemanha quanto no Brasil, as decisões das
respectivas cortes constitucionais foram criticadas por parcelas significativas
da dogmática e de movimentos político-sociais. E isso porque os dois tribunais
chegaram a resultados diametralmente opostos.
A dificuldade mais séria
está em assumir como central o problema do fator de correção do Direito e de posicioná-lo
dentro ou fora do sistema jurídico, tendo de se definir com algum grau de
precisão qual(is) seria(m) esse(s) critério(s), sem correr o risco de se cair
na armadilha do subjetivismo do aplicador da norma ou, o mais grave, da
formulação aparentemente científica, mas que só serve para esconder o que já se
decidiu de maneira descontrolada. Isso faz lembrar Ângelo, em Medida por
medida, de William Shakespeare, para quem a dureza da lei poderia ser atenuada,
desde que a noviça com ele se deitasse para salvar o irmão da pena de morte no
Ducado de Viena.
[1] KELSEN, Hans. Teoria
pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 4 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. p. 1-2.
[2] Convém registrar que
Kelsen, ao menos na primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, usou a
expressão “Jurisprudenz”, traduzida por “jurisprudência”, o que parece ser
incorreto, pois não significa, como em português, o conjunto reiterado de decisões
judiciais, mas o equivalente a Jurisprudência (com maiúsuculas), com o sentido
aproximado (e não totalmente simétrico) de ciência jurídica. Na versão
original, ele alude à confusão da Jurisprudência com a Psicologia, a Biologia,
a Ética e a Teologia, diferentemente do texto em português. Cf. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. Herausgegeben von
Matthias Jestaedt. Studienausgabe der 1. Auflage 1934. Tübingen: Mohr
Siebeck, 2008. p. 1.
[3] O texto saiu na revista
Süddeutsche Juristenzeitung (v. 1, p. 105-108, 1946). O título original em
alemão é “Gesetzlicher Unrecht und übergesetzliches Recht”. Em espanhol, é mais
corrente a tradução para “Arbitrariedad legal y derecho supralegal”. Em inglês, prefere-se “Statutory Non-Law and
Suprastatutory Law”.
[4] Veja-se a respeito o
artigo de Virgílio Afonso da Silva intitulado “Transição e direito: culpa,
punição, memória”, publicado em A memória e as ciências humanas (São Paulo:
Humanitas, 2011, p. 87-106), organizado por Helmut Galle e Rainer Schmidt.
[5] MARTINS, Fabio Henrique
Araujo. Uma análise da ADP 153 desde a fórmula de Radbruch e da jurisprudência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Internacional de Direito e
Cidadania, n. 9, p. 43-53, fevereiro, 2011.
Fonte: Otavio Luiz Rodrigues
Junior é advogado da União
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