O eixo temático da peça, primeiramente encenada em 1596, foca-se num contrato celebrado entre um mercador judeu e um cidadão veneziano; aquele primeiro marcado como usurário, e este último identificado como destemido inimigo dos agiotas. O mercador avençou um empréstimo garantido pelo cidadão com exatamente uma libra de carne, do próprio corpo. A libra de carne (the pound of flesh) pode significar a desumanidade do mercador (Shylock), sua natureza predatória, seu desejo de vingança; ou mesmo sua confiança na referência da literalidade da lei, o que mais tarde se voltará contra ele. A tática virou-se contra o tático.O Mercador de Veneza nos coloca ainda hoje problemas muito complexos: os fundamentos morais da crítica à usura, a dedicação à pessoa amada, o desconforto da riqueza, certo contraste entre cristianismo e judaísmo e, principalmente, a convergência entre justiça e piedade.
Do ponto de vista estritamente jurídico, O Mercador de Veneza remete-nos a um problema filosófico atemporal: até que ponto a teoria do direito deve centrar-se apenas na norma, relegando-se para outros campos de investigação questões de política ou juízos de equidade. Para o campeão desta versão teórica, (...) a essência do direito é ser norma e (...) portanto, toda teoria jurídica deve ser uma teoria de normas, uma teoria das proposições normativas, uma teoria do direito objetivo.  De qualquer maneira, pela letra da lei, ou por um juízo abstrato qualquer de equidade, o contrato não podia ser executado.
A me valer de um dogma contemporâneo, talvez inaplicável ao mundo forense elisabetano, a validade de um negócio jurídico requer objeto lícito, possível, determinado ou determinável (Código Civil Brasileiro, art. 104). Impossível a retirada de uma libra de carne, sem que se derramasse sangue de um cidadão veneziano. Ilícito garantir-se uma obrigação pecuniária com fragmento do próprio corpo.
Esta a reserva de sentido que o horizonte hermenêutico do teatro shakespeariano nos coloca: problemas universais, que se multiplicam em todos os tempos.
 Fonte:Glória Regina

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