Recusa no pagamento do cheque como forma de pagamento: (i)legalidade?


Não obstante a aceitação do cheque, quase que generalizada, como forma de pagamento em estabelecimentos comerciais, dúvidas persistem acerca da possibilidade ou não de ser o mesmo recusado pelo comerciante, em sendo ele uma ordem de pagamento à vista.
O questionamento ganha maior relevância na atualidade, diante da infeliz constatação acerca da crescente proliferação de cheques sem provisão de fundos emitidos no comércio, fazendo com que a inadimplência contratual alcance índices alarmantes, proporcionando, o "descrédito" do cheque como modalidade de pagamento.
A emissão de cheques sem provisionamento de fundos tornou-se banalizada, não havendo por parte da legislação vigente maior repressão acerca desse procedimento, motivo ao qual que gera angústia à classe dos comerciantes que, somadas as dificuldades enfrentadas diante de uma economia estagnada, sem perspectivas de crescimento, tem de combater o fantasma da inadimplência contratual.
Tamanha frustação fez com que diversos comerciantes adotasssem medidas protetivas para assegurar o adimplemento das obrigações contratuais, optando em muitos casos pelo recebimento da contraprestação mediante o pagamento em moeda corrente, ou ainda em cartão de débito/crédito, recusando o cheque como forma de pagamento.
Em outros casos, os estabelecimentos comerciais condicionam o recebimento do cheque mediante determinadas exigências, servindo estas como critério para o comerciante certificar-se do seu recebimento futuro.
Tais procedimentos, adotados pelos comerciantes, sem a devida cautela e consultoria acerca de sua legalidade, tem gerado muitos percalços e incômodos diante das inúmeras reclamações recebidas pelos órgãos de proteção ao consumidor, sem contar a onda crescente de ações indenizatórias movidas pelos consumidores que alegam a frustração de expectativas causada pela recusa no recebimento do cheque como forma de pagamento.
A fim de esclarecer algumas dúvidas sobre o procedimento a ser adotado pelos estabelecimentos comerciais pertinentes a política de recebimento de cheques, cabe aqui tecer alguns esclarecimentos que podem ser obtidos da interpretação da legislação vigente.
À primeira vista, poder-se-ia afirmar que a recusa do cheque como forma de pagamento em uma relação comercial de compra e venda não caracteriza ilegalidade por parte do fornecedor do produto ou serviço. Tal premissa advém do preceito constitucional que estabelece o princípio da legalidade (art. 5, II, da CF/88), no qual "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Como inexiste, atualmente, qualquer restrição acerca da recusa do cheque, pode-se constatar que tal procedimento, uma vez adotado pelo comerciante, não pode ser recriminado. Como bem esclarece a jurisprudência de nossos Pretórios, o cheque, que pode fazer às vezes de moeda, não o é, não possuindo curso forçado, motivo pelo qual sua recusa por estabelecimento comercial não se reveste de qualquer ilegalidade.
A análise de nossa legislação, principalmente a Lei n.° 7.357/85, que estabelece requisitos para a emissão do cheque, possibilita essa primeira constatação: o cheque pode ser recusado pelo comerciante, não exigindo deste qualquer ato ou fato que possibilite ao consumidor, conhecimento acerca da referida prática.
Logo, não obstante a falta de informações fornecidas pelo comerciante acerca da política de recebimento de cheques nas relações de compra e venda, tal fato não poderá ser considerado irregular, sequer ilegal, tendo em vista a não obrigatoriedade ao recebimento do cheque.
Em artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, em 10/02/2003, Carlos Etcheverry, magistrado gaúcho, confirmou referido posicionamento, asseverando a desnecessidade de ser informado pelo estabelecimento comercial o recebimento ou não do cheque como forma de pagamento.
Dentre os motivos que levaram a essa conclusão, destaca o magistrado, é a exigência do Código Civil, conforme dispõe em seu o art. 315, no qual impõe ao consumidor/devedor o pagamento da dívida no vencimento, em moeda corrente.
Assim, pode-se afirmar que, uma vez realizada a compra pelo consumidor, tem como obrigação pagar a dívida em moeda corrente, não podendo opor ao fornecedor a obrigatoriedade ao recebimento de cheque, em razão da inexistência de prescrição legal que o determine.
Em sendo o cheque um título de crédito, no qual impõe uma ordem de pagamento à vista, não possue as características da moeda corrente, razão pelo qual o adimplemento de uma obrigação através de sua emissão é considerado uma dação em pagamento, nos termos do art. 356 do Código Civil.
Por essas razões, afirmamos, preliminarmente, que a recusa do cheque como forma de pagamento não pode ser considerada ilegal, não havendo qualquer diposição normativa que imponha seu curso forçado, razão pelo qual seu recebimento é mera liberalidade do comerciante.
Entretanto, essa posição deve ser relativizada diante das novas diretrizes imposta ao comerciante pelo Código de Defesa do Consumidor. Abarcando uma série de normas protetivas ao consumidor, considerado hipossuficiente na relação comercial, o CDC trouxe uma nova visão acerca das relações consumeristas, exigindo do fornecedor maiores responsabilidades e, principalmente, a boa-fé objetiva nessas transações.
Diante desses novos parâmetros legais, formou-se uma nova concepção diante da relação consumerista, no qual se exige do fornecedor uma série de obrigações acessórias, a fim de tornar mais clara a oferta de seus produtos. Dentre elas destacam-se, os deveres de informação, aviso, esclarecimento, colaboração e cooperação do fornecedor.
Nessa perspectiva, ao estabelecer determinada conduta no recebimento de cheques, caberá ao fornecedor/comerciante informar clara e objetivamente a política adotada, dando publicidade ao fato. Agindo dessa forma, estará em consonância com as diretrizes do CDC, evitando a frustração de expectativas que poderiam ser geradas ao consumidor desinformado.
Como já mencionamos, a aceitação do cheque é um procedimento comum na atividade comercial, de modo que a suspensão em seu recebimento demandará informação ao consumidor, partindo do pressuposto que este desconhece a prática adotada pelo fornecedor.
Essa cautela e providência deve ser maior quando o fornecedor impõe aos consumidores condições para o recebimento do cheque, como exemplo, a abertura de conta corrente a mais de 1 (um) ano, haja vista posições divergentes quanto a licitude desse procedimento.
Aos que consideram essa prática infrativa, possibilitar a alguns o direito de efetuar o pagamento por meio de cheque, recusando a outros essa prerrogativa, implica em afronta aos direitos básicos do consumidor a liberdade de escolha e igualdade nas contratações.
Dando ênfase a esse entendimento, o parecer conjunto n.° 01/2003 emitido pelo Procon Estadual de Minas Gerais, órgão integrante do Ministério Público, considerou legal a prática do fornecedor em aceitar ou não o cheque como forma de pagamento, não podendo, entretanto, condicionar o seu recebimento ao tempo de existência da conta bancária.
Sinalizando de forma contrária a essa restrição, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, através da promotoria de Justiça e Defesa do Consumidor, no inquérito civil n.° 92/2003, considerou legal a imposição de condições pelo fornecedor para o recebimento do cheque, obrigando, apenas, o dever de informação aos consumidores. Posição essa que se coaduna com as exigências do Código de Defesa do Consumidor, conforme estabelece o art. 6.°, III e 32 do CDC.
Conclui-se, então, que não é considerada prática infrativa a exigência de condições impostas para o recebimento do cheque, desde que, frise-se, haja informação clara e precisa ao consumidor. Como se pode constatar, exige-se do fornecedor a publicidade e informação do procedimento adotado em seu estabelecimento comercial, demonstrando boa-fé objetiva nas relações consumeristas.
 Fonte: Conjur.com.br

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